A Mitologia do João
“A Mitologia do João”
Henrique Eisenmann, DMA.
11 de Julho de 2019
Nos últimos dias recebi várias mensagens me pedindo para esclarecer alguns aspectos sobre o que realmente foi a revolução musical trazida à tona pelo baiano de Juazeiro, João Gilberto, que nos deixou no último Sábado.
Talvez por conta de toda uma mitologia que se erigiu ao redor de sua persona através da imprensa, da literatura e da academia, João tornou-se um monumento difícil de se tocar, contestar, estudar, criticar e compreender. Há os defensores cegos do legado de João, colocando-o frequentemente no zênite do panteão da música brasileira (a revista Rolling Stone elegeu-o como segundo músico brasileiro mais importante de todos os tempos). Do outro lado, há os que defendem que o legado de João foi um desserviço à identidade nacional; uma “americanização” da música brasileira, fruto das “experiências de apartamento” da classe média-alta carioca regadas a whisky importado. Meus anos de experiência com pesquisa acadêmica me ensinaram que toda vez que visões tão opostas surgem, nunca há um lado dono da verdade. É preciso apenas enxergar a situação em sua complexidade, cheia de contradições, mitologias, erros e acertos. O que não podemos negar, é que o João é figura central na história da Bossa Nova, e portanto da música brasileira. No ano de 1965, em meio ao sucesso dos Beatles, é preciso lembrar que o Grammy de melhor álbum foi concedido a João, não ao John.
Para início de conversa, como diz o velho ditado, um vídeo de YouTube vale mais que mil palavras. Para entender o impacto da Bossa Nova, comece por assistir a trechos desse vídeo com as 100 canções brasileiras mais escutadas na década de 1940 (https://youtu.be/3nwTd_WXa-I). Logo após, escute trechos do disco de João considerado o abre-alas da Bossa Nova, de 1959, “Chega de Saudade” (https://youtu.be/-flS_aUW9bE). A diferença é abismal, como se houvesse um portal separando um passado distante de um som familiar, presente ainda nas esquinas de qualquer bar nas ruas de São Paulo/Rio. Houve uma tremenda quebra de paradigma, em que um novo jeito de se tocar, cantar e ouvir música substituiu um paradigma antigo marcado por interpretações operáticas, boleros, arranjos orquestrais, lirismo exagerado e ritmos “endurecidos”.
As inovações de João confundem-se com as inovações da Bossa Nova; a começar pela batida de violão, que é simples, concisa, porém extremamente “sincopada” (os acentos são inesperados, inusitados, cuidadosamente colocados sobre os tempos fracos, de modo a deslocar constantemente a nossa percepção de pulso). Basta comparar essa levada ao estilo mais primitivo, previsível e repetitivo dos Sambas-Canções da década de 40. A ideia de João era criar um balanço mais improvisado, extemporâneo e delicado sem a necessidade de repetições óbvias ou submissão a um padrão fixo. Há quem diga que essa é influência do jazz estadounidense, em especial do cool jazz, que surgiu como movimento antagônico ao som grandioso e criteriosamente arranjado das Big Bands de swing.
Ademais, a maior e mais ímpar inovação de João foi no âmbito vocal. Em clara contradição ao paradigma do estilo operático das rádios e cassinos, João começou a cantar de maneira seca, clara, sem vibrato ou senso de humor, em volume baixo e com timbre constante. Mais uma vez podemos ver a influência de cantores de jazz como Chet Baker, vide esse vídeo do charmoso cantor americano após uma suposta briga que custou-lhe um incisivo central (https://youtu.be/0ybMVHeJZ7w). A diferença é que João tornou-se um mestre em deslocar a melodia, atrasando-a ou antecipando-a em relação ao formato original, tornando suas interpretações muito mais únicas, inesperadas e elegantes. Apesar da secura emocional da voz de João, o atrito entre o deslocamento melódico de sua voz e a constante sincopação no violão abriu um universo de possibilidades de expressão e improvisação. Essa tornou-se a nova escola da canção brasileira, e graças à ela tivemos Chico, Caetano, Gil, Edu, Paulinho, Roberto, Milton, Geraldo, e muitos outros.
De volta ao nosso dilema original, queria trazer as palavras do pensador Húngaro Arthur Koestler, que disse que toda grande invenção ou revolução criativa não resulta de um esforço individual, mas de uma transformação coletiva no pensar de todo um grupo. Nenhuma mudança estrutural acontece de uma hora pra outra; é preciso que exista um “amadurecimento” gradual dentro de uma comunidade, um fenômeno cultural, com um acúmulo de novas habilidades e ideias que levam a transformação/revolução inevitável. Vivemos numa sociedade onde a historiografia e a mídia constantemente buscam por heróis; gênios; criando mitologias ao redor de indivíduos, ao invés de tentar analisar o fenômeno cultural e a comunidade por trás de uma revolução.
Nesse caso específico, é preciso lembrar que Garoto já vinha dedilhando harmonias de jazz em seu violão 10 anos antes de João (https://youtu.be/egB--OYHbOQ), assim como Luís Bonfá (https://youtu.be/luLaqhTM478); que o compositor Custódio Mesquita já estava utilizando modulações e harmonias mais avançadas muito antes de Jobim (https://youtu.be/-lx83iCUkbc), e que Johnny Alf já flertava com uma voz mais suave e deslocamentos melódicos anos antes de João iniciar sua carreira solo (https://youtu.be/z7cRw1qOCgw). Assim, devemos situar João não como um gênio-inventor ou pioneiro de um estilo, mas como uma síntese que ajudou a estabelecer um novo paradigma que já vinha sendo erigido coletivamente por uma comunidade artística.
De modo algum estou tirando o mérito de João; apenas quero humaniza-lo, libera-lo do fardo de guardião da Bossa Nova, e finalmente vê-lo como uma epítome linda de um processo criativo fruto do trabalho árduo de dezenas de músicos e artistas maravilhosos.